Se você acha que jornalismo na TV é show de imagens, profusão de lágrimas e excesso de perguntas ridículas então a cobertura das enchentes em Santa Catarina pela TV foi um sucesso.
Mas se você acredita que jornalismo de verdade, mesmo na TV, deveria investigar o que realmente aconteceu, a extensão e causas da tragédia, então a cobertura em Santa Catarina foi um... desastre.
Um fantástico show de pieguices, redundâncias e improvisações com pouquíssimas informações, nenhuma investigação e ainda menos contextualização.
Jornalismo na TV ou em qualquer lugar tem que ter boas imagens e emoção.Nada contra. Mas também tem que ter o mínimo de conteúdo. Afinal, telejornalismo é prestação de serviço obrigatório em concessão pública.
No entanto, o que fica evidente é que para as nossas redes de TV "tragédia" significa antes de tudo "oportunidade" para aumentar a audiência e investir na própria imagem.
E dá-lhe excesso de matérias que dizem pouco e não explicam nada. O verdadeiro objetivo é comover o público e ajudar a inverter a longa tendência de queda de audiência dos telejornais.
Além da pieguice da cobertura, surge uma tremenda oportunidade comercial para essas emissoras: campanhas autopromocionais de ajuda duvidosa às vítimas das tragédias, mas que fortalecem a imagem e os interesses das emissoras.
Campanhas filantrópicas?
Este domingo, o show de pieguices na TV ultrapassou todos os limites do bom senso.Foi um excesso de lágrimas e pouquíssimas cobranças. Confesso que em muitos anos de TV não havia visto tanta bobagem e tão pouca informação em uma tragédia tão recorrente e previsível. Pobre Santa Catarina!
Já em 1984 cobria enchentes no Vale do Itajaí para agências internacionais de notícias. Repeti a dose diversas vezes. Pelo jeito, nada mudou. A pergunta dos meus editores continua relevante: por que vocês não fazem alguma coisa para evitar as próximas enchentes?
Mas pelo jeito, parece que esse tipo de pergunta não é importante. Pelo menos, não para a nossa TV. Frente às lágrimas dos sobreviventes, cidades alagadas e muitas casas destruídas, o jornalismo de verdade, pelo menos na TV, não tem vez.
Diretores na rua
Neste último domingo, teve de "quase" tudo na cobertura da tragédia em Santa Catarina pelas nossas TVs.
Na Record, a campanha "Reconstruindo Santa Catarina" ou seria "Reconstruindo a Record", ficou parecendo muito com o famigerado formato dos programas evangélicos da emissora.
Artistas e apresentadores foram convidados a fazer figuração ao vivo no lançamento da campanha. Uma das cenas mais patéticas da nossa TV. Todos em pé no fundo do palco, cada um ao lado do outro, sem saber bem muito bem o que dizer ou fazer. A improvisação e o constrangimento eram evidentes.
Enquanto isso, o mestre de cerimônia do programa, o repórter Brito Júnior, a todo instante fazia questão de elogiar a iniciativa da rede Record: arrecadar fundos para reconstruir casas em Santa Catarina.
Ele também aproveitava a ocasião para destacar a qualidade das reportagens dos colegas de emissora. Um show de matérias lacrimogêneas que não diziam muito, mas que conseguiam seu principal objetivo: emocionar o público e garantir doações e fortalecer a imagem da emissora.
Mas o ponto alto da cobertura foram os diretores da emissora caminhando pelas ruas devastadas de Blumenau. Todos vestindo ternos escuros, "men in black", homens de preto ou seriam pastores evangélicos, ouvindo as reclamações dos moradores, se reunindo com os políticos locais e garantindo ao público soluções milagrosas.
Sinceramente, foi algo inusitado na TV brasileira. Não me lembro jamais de ver diretores de emissoras de TV fazendo esse papel. Sinal dos tempos ou de desespero. Ainda não estou certo.
Doação de salários
A Record fez questão de mobilizar seus melhores jornalistas para entrevistar ou "levantar a bola" para seus próprios diretores em pleno cenário da tragédia catarinense.
Isso certamente demonstra que não há mais limites para as nossas TVs. Por um punhado de Ibopes, fazemos qualquer negócio.
Mas o momento mais singular ou patético foi a declaração ou "cobrança" ao vivo do repórter Brito Junior aos apresentadores da emissora presentes no palco da campanha.
Ele se dirige ao público telespectador para informar que naquele momento todos os apresentadores da Record teriam decidido dar o exemplo e abrir mão de dez, vinte, trinta ou até mesmo cem por cento de seus salários para ajudar as vitimas das enchentes em Santa Catarina. Corte rápido para a cara de surpresa do jornalista Paulo Henrique Amorim. Valeu a pena ter assistido a tantas bobagens para testemunhar esse momento de solidariedade surpreendente ou "forçada". Acho que o PHA não entendeu muito bem ou não gostou da brincadeira. Tanto faz!
Mas teve mais. O mesmo Paulo Henrique Amorim não perderia a oportunidade para promover o jornalismo solidário: "Não é porque a reportagem é minha, mas eu gostaria de chamar atenção dos telespectadores".
Corte rápido para mais comerciais e mais doações.
Artistas ao vivo e "ouro" para o Brasil
No outro extremo, a TV Cultura de São Paulo também embarcou na cobertura e na promoção da tragédia com campanhas de ajuda. Meio às pressas, organizou show ao vivo diretamente do auditório do Ibirapuera com muitos artistas, em sua maioria grandes desconhecidos. Foi outro show de pieguice e improvisação na TV.
Vários apresentadores da emissora compareceram ao palco improvisado e obviamente não sabiam o que dizer ou fazer. Não foi boa televisão, mas acho que valeu a intenção. Pelo menos, não prometeram doar os salários dos funcionários da emissora.
Aqui entre nós, tenho minhas dúvidas sobre a eficácia dessas campanhas filantrópicas na TV. Fazem grandes promoções, enormes promessas e dificilmente divulgam seus resultados.
TV é muito boa para mobilizar o público. Mas odeia prestar contas de seus atos ou de suas campanhas.
E como recordar é viver, seria bom lembrar uma das primeiras campanhas na TV: Ouro para o bem do Brasil. Lembram? Foi nos primeiros anos da ditadura.Assisti ao vivo pela TV. Milhares de brasileiros foram aos postos de arrecadação das Associadas levando suas alianças de ouro com o objetivo de salvar o Brasil da falência. Pobres brasileiros. Já naquela época, a TV mostrava sua força e sua farsa.
O Brasil continuou o mesmo. O ouro para o bem do país provavelmente sumiu. E a nossa TV jamais prestou contas do dinheiro arrecadado com tanta boa vontade.
Então, por que não promover um novo show ao vivo com artistas conhecidos e desconhecidos para demonstrar ao público como foi gasto todo o dinheiro arrecadado para as vítimas de Santa Catarina?
Pode não dar bom Ibope, mas garantiria mais transparência, honestidade e engajamento do público em futuras campanhas. Foi só uma sugestão.
Jornalistas bombeiros e pára-quedistas!
Afinal, o desastre de Santa Catarina sempre foi "previsível" – eu mesmo já cobri várias outras inundações no Vale do Itajaí – e outros desastres com certeza virão.
Em vez de investir em campanhas de solidariedade, talvez devêssemos investir no treinamento de profissionais para cobrir desastres e fazer um jornalismo de TV melhor. Um jornalismo que busque as causas dos desastres e que exija medidas concretas para evitá-los no futuro. Pode não dar tanto Ibope, mas pode salvar muitas vidas.
Nunca entendi por que as emissoras de TV não investem em treinamento para a cobertura de desastres. Não sabemos quando, mas eles sempre acontecem. E eles são muito importantes para a cobertura jornalística. Não podemos viver eternamente acreditando em improvisações, amadorismos ou jeitinhos de última hora. Se bombeiros fossem jornalistas, todos os incêndios ou inundações também seriam um desastre. Bombeiros ou profissionais que vivem de tragédias se preparam para as surpresas da natureza, das irresponsabilidades políticas ou da crescente especulação imobiliária.
Tragédias ou desastres são o grande momento de qualquer tipo de jornalismo.Ainda mais na TV. Não podem ser previstos ou planejados, mas a cobertura dessas tragédias pode ser preparada, equipes podem ser treinadas e os resultados finais podem ser avaliados. Temos que aprender a cometer erros novos.
No Fantástico, a cobertura não foi muito diferente das competidoras. Muitas lágrimas, imagens dramáticas, pés na lama e pouquíssimas informações relevantes.
Mas o mais "patético" foi levar a bela apresentadora do Fantástico, Patrícia Poeta, para os confins do desastre catarinense. Pobre apresentadora. A falta de jeito e experiência era evidente. Afinal, não se faz um repórter de verdade, que cubra tragédias de uma hora para outra. Além disso, a beleza e a fama muitas vezes atrapalham. Bom jornalismo não se improvisa.
Também considero essa prática jornalística um certo desrespeito com os profissionais mais dedicados, experientes, porém menos famosos. Eles ficam "ralando" durante dias para garantir uma boa cobertura, e nos grandes momentos, nas principais reportagens, nas melhores chamadas são substituídos pelos jornalistas ou apresentadores pára-quedistas. Triste vida do repórter de verdade.
Pois o ponto alto da cobertura da tragédia em Santa Catarina no Fantástico deste domingo, com direito à chamada retumbante na Internet foi: "Patrícia Poeta passa madrugada em abrigo em Ilhota(SC)". Pasmem! Ver aqui.
Destaque para algumas das melhores e mais relevantes perguntas da toda a cobertura de TV da tragédia em Santa Catarina: Patrícia Poeta: Qual vai ser o dia mais triste, o momento mais triste que você vai lembrar?
Impressionante. Mas não foi só isso. Teve mais.
Na penumbra do abrigo, altas horas, a apresentadora do Fantástico ainda esbanjava elegância e beleza com seus cabelos longos, soltos, bem cuidados e penteados e com muita, muita maquiagem no rosto. Ela estava bem preparada para enfrentar as agruras de uma longa noite no abrigo. Ao fundo, mulher sentada com ar de tristeza e resignação aguardava o desastre. Cenário perfeito para a pergunta definitiva:
Patrícia Poeta: Simone, você está na fila do banheiro?
Corte rápido para os comerciais e para mais pedidos de doações.
* Jornalista, professor de jornalismo da UERJ e professor visitante da Rutgers, The State University of New Jersey.
Publicado no site Comunique-se em 01/12/2008
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